Inúmeros acionistas ajuizaram ações individuais e coletivas contra a Petrobras e a União Federal desde as investigações da Lava Jato

Recentemente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou mais uma das ações propostas por acionistas minoritários da Petrobras[1]. No caso, um investidor brasileiro formulou pedido de indenização contra a Petrobras e sua acionista controladora (União Federal) pelos prejuízos que alega ter sofrido pela desvalorização das ações da companhia de sua titularidade, em decorrência de atos de corrupção que assolaram a Petrobras nos últimos anos.

[1] Apelação Cível nº 5010110-30.2015.4.04.7200/SC, 3ª Turma do TRF- 4ª Região, Relatora Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, julgado em 04/06/2019.
A questão em si não é nova. Inúmeros acionistas ajuizaram ações individuais e coletivas contra a Petrobras e a União Federal desde que as investigações da Operação Lava Jato atingiram a companhia. Em regra, essas ações vêm sendo sumariamente extintas em razão da cláusula arbitral inserida no estatuto social da Petrobras, que impede que tais discussões sejam travadas perante o Poder Judiciário. O que diferencia o caso em questão dos demais é justamente o fato de que, dessa vez, o Poder Judiciário afastou a eficácia da cláusula arbitral, abrindo caminho para que os argumentos de mérito fossem analisados.

Em primeira instância, os pedidos foram julgados integralmente improcedentes (ou seja, houve enfrentamento do mérito da disputa) pelo juízo da 4ª Vara Federal de Florianópolis/SC. Em grau de recurso, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região concluiu que o acionista minoritário nem sequer poderia ter ajuizado a ação, pois seria parte ilegítima para mover ação de responsabilidade contra a acionista controladora, com fundamento no artigo 159, § 7º, da Lei das S.As.[2].

Ao que nos parece, o acórdão acabou misturando as regras de responsabilidade civil dos administradores, dos controladores e da companhia, conferindo tratamento idêntico para essas três distintas modalidades de responsabilidade civil. Vejamos:

[2] Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio. […]§7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador.

RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DAS COMPANHIAS ABERTAS

Os administradores (diretores e conselheiros) são os grandes responsáveis pelo sucesso ou insucesso da companhia, cabendo-lhes o importante papel de conduzirem os negócios e gerirem o patrimônio. Justamente por ocuparem posição de alta relevância para a companhia, a Lei das S.As. impõe um amplo conjunto de deveres fiduciários aos administradores, que deverão pautar suas condutas pelas máximas da diligência, lealdade, transparência e informação.

Em regra geral, o administrador não responde pessoalmente pelos prejuízos causados à companhia em virtude de ato regular de gestão (artigo 158, da Lei das S.As.) ainda que proveniente de uma decisão negocial incorreta[3]. Contudo, por vezes os prejuízos causados à companhia decorrem não de decisões gerencialmente equivocadas, mas de atos de imprudência, despreparo, desinformação, em conflito de interesses pelo administrador, entre outras ilicitudes. Nesses casos, a companhia poderá mover ação de responsabilidade civil contra os administradores, visando a recomposição de seu patrimônio[4].

[3] Enunciado nº 86 da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal.
[4] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada, volume 3: Artigos 138 a 205. 2ª Edição, 2ª Tiragem. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 182 e 183.

A ação de responsabilidade contra administradores recebeu bastante atenção do legislador. Conta com regulamentação minuciosa nos artigos 159 e 246 da Lei das S.As. e se desdobra em ação social de responsabilidade (artigo 159, caput e §§ 1º a 5º) e em ação individual dos acionistas contra os administradores (artigo 159, § 7º).

Na ação social, o processo é movido em nome e benefício da própria companhia. Busca-se responsabilizar os administradores da sociedade pelos prejuízos que eles causaram à companhia. Por essa razão, a indenização que for devida é revertida em favor da sociedade (artigo 159, § 5º). Para que a ação social possa ser ajuizada, é preciso primeiro submeter a questão à assembleia geral, para que se delibere sobre a conveniência e oportunidade da medida (artigo 159, caput)[5]. Se a assembleia aprovar o ajuizamento da ação, os administradores devem ser automaticamente impedidos ou substituídos, ainda que a ação de responsabilidade acabe não sendo proposta[6].

[5] ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Responsabilidade Civil dos Administradores de S/A. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 308 e 309.
[6] CARVALHOSA, Modesto. Comentários a Lei de Sociedades Anônimas, 3º volume: Arts. 138 a 205. 6ª Edição, 3ª Tiragem. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 569. EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada, volume 3: artigos 138 ao 205. 2ª Edição, 2ª Tiragem. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 186.

Eventual reprovação da matéria em assembleia, contudo, não impede os acionistas dissidentes de ajuizarem a ação de responsabilidade contra os administradores. O artigo 159, § 4º, da Lei das S.As. permite que acionistas titulares de ao menos 5% do capital social ajuízem a ação de responsabilidade em nome da companhia. Nessa hipótese, não há destituição dos administradores[7].

O artigo 159 da Lei das S.As. ainda prevê outra espécie de ação de responsabilidade contra os administradores: a ação individual dos acionistas. Nesse caso, os acionistas agem em nome próprio, e não em nome da companhia. O objetivo é a reparação pelos prejuízos que sofreram em razão de atos praticados pelos administradores. A ação individual não depende de prévia deliberação da assembleia geral ou da titularidade de um número mínimo de ações para ser ajuizada. A lei apenas exige que os prejuízos suportados pelos autores da ação sejam diretos — isto é, não podem ser mero reflexo de um dano causado à companhia[8].

Não há, entretanto, uma relação individualizada de quais são os danos conceituados como “diretos”. Em geral, a jurisprudência entende que a desvalorização das ações da companhia na bolsa de valores[9] é prejuízo indireto, pois atinge primeiro a sociedade e, apenas reflexamente, seus acionistas.

A Lei das S.As. reconhece ser legítimo o exercício desse poder diretivo conferido ao acionista controlador, e prevê contrapartidas para isso. Os controladores têm o dever de utilizar o poder de controle no interesse da companhia, em prol de seu objeto e função social (artigo 116, parágrafo único). Os controladores não podem usar seu poder para atenderem a fins pessoais, em prejuízo dos interesses da sociedade ou dos demais interesses que ele tem o dever de preservar[10], sob pena de sua responsabilidade pessoal e objetiva por abuso do poder de controle[11].

A ação de responsabilidade contra o acionista controlador também tem natureza de ação social. Busca-se a reparação de prejuízos causados à companhia, de modo que a indenização se reverte em favor dos cofres da sociedade. Diferentemente do que ocorre na ação de responsabilidade contra administradores, porém, a ação de responsabilidade do controlador não foi minuciosamente regulada. O artigo 159 da Lei das S.As. não se aplica a esse tipo de disputa, sendo, portanto, dispensável convocar uma assembleia geral para deliberar sobre a propositura da ação[12].

[8] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada, volume 3: Artigos 138 a 205. 2ª Edição, 2ª Tiragem. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 185.

[9] TJSP; Apelação nº 1052131-96.2018.8.26.0100. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Relator: Desembargador Hamid Bdine. Data de julgamento: 06/03/2019.

[10] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada, volume 3: artigos 138 ao 205. 2ª Edição, 2ª Tiragem. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 187.

[11] CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando. Tratado de Direito Empresarial, volume III: Sociedades Anônimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 569.

[12] STJ; REsp nº 16.410/SP. Quarta Turma; Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Data de julgamento: 14/12/1992. CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando. Tratado de Direito Empresarial, volume III: Sociedades Anônimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1.055.

RESPONSABILIDADE DA COMPANHIA ABERTA

A questão da responsabilidade civil da própria companhia perante seus acionistas é tema de vanguarda no Direito societário nacional. Essa modalidade de responsabilização civil não tem previsão expressa na Lei das S.As. Trata-se de uma construção doutrinária, inspirada nas regras do Security Exchange Act norte-americano e baseada nas regras gerais de responsabilidade civil brasileiras e na teoria da “presentação” da sociedade anônima.

A discussão ganhou força principalmente no caso Petrobras, iniciado após investigações da Operação Lava Jato revelarem inúmeros esquemas de corrupção envolvendo seus administradores e agentes políticos, resultando em fortes quedas no preço dos papéis da companhia no Brasil e no exterior. Em 2014, diversos investidores ajuizaram ações coletivas nos Estados Unidos (class action lawsuits) contra a Petrobras, seus administradores e controladores, buscando a reparação dos danos que tiveram com a desvalorização de suas ações.

As diversas class actions movidas contra a Petrobras foram consolidadas em um único procedimento na Corte Distrital do Sul de Nova Iorque em fevereiro de 2015 e submetidas ao exame do juiz Jed Rakoff. A ação acabou sendo extinta em relação aos investidores brasileiros, por entender que aqueles que adquiriram ações diretas da companhia na então denominada BM&FBovespa estariam vinculados à cláusula arbitral prevista no artigo 58 de seu estatuto social e, por isso, somente poderiam demandar contra a companhia em procedimento arbitral instaurado perante a Câmara de Arbitragem do Mercado[13]. Pouco depois, a Petrobras firmou acordo multibilionário com seus acionistas estrangeiros (detentores de ADRs), desembolsando aproximadamente 3,4 bilhões de reais para encerrar a class action em curso nos Estados Unidos[14].

Um conjunto expressivo de acionistas brasileiros da Petrobras – notadamente os fundos de investimento Previ, Petros e Funcesp – formulou pedido de instituição de arbitragem perante a Câmara de Arbitragem do Mercado, buscando indenização, em última análise, em razão dos mesmos eventos discutidos na class action americana[15].

Resumidamente, os adeptos da responsabilidade civil da companhia perante seus acionistas afirmam que, para todos os fins de direito, os administradores não são meros mandatários da sociedade anônima, são a sociedade anônima corporificada[16]. Dessa forma, os atos ilícitos praticados pelos administradores seriam da própria companhia, que por essa razão é civilmente responsável pela reparação dos prejuízos causados aos acionistas, com base na teoria do ato ilícito[17]. Há, contudo, fortes argumentos contrários a essa posição, notadamente daqueles que defendem que a Lei das S.As. estruturou um sistema próprio de responsabilidade pautado na responsabilização indireta dos agentes societários, nos quais apenas os administradores e controladores podem ser chamados a responder pelos prejuízos dos acionistas.

“Os adeptos da responsabilidade civil da companhia perante seus acionistas afirmam que, para todos os fins de direito, os administradores não são meros mandatários da sociedade anônima, são a sociedade anônima corporificada.”

[13] In Re Petrobras Securities Litigation (14-cv-9662). Judge Jed S. Rakoff’s Opinion on the Motion to Dismiss. Disponível em: <http://cases.justia.com/federal/district-courts/new-york/nysdce/1:2014cv09662/435841/194/0.pdf?ts=1438464300>, acesso em 28/11/2019.

[14] Nicolau Pamplona. Petrobras vai pagar R$ 3,4 bi para encerrar investigações sobre corrupção nos EUA. Folha de São Paulo, 27 de setembro de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/09/petrobras-vai-pagar-r-34-bi-para-encerrar-investigacoes-sobre-corrupcao-nos-eua.shtml>, acesso em 28/11/2019.

[15] Petrobras confirma que fundos pediram arbitragem para reaver perdas e diz que vai se defender. Globo, 15 de novembro de 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/petrobras-confirma-que-fundos-pediram-arbitragem-para-reaver-perdas-e-diz-que-vai-se-defender.ghtml>, acesso em 28/11/2019.

[16] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A Responsabilidade Civil das Companhias de Mercado – A tutela coletiva dos investidores em sede arbitral. In: CARVALHOSA, Modesto (Org.); LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros (Org.); WALD, Arnoldo (Org.). A Responsabilidade Civil da Empresa Perante os Investidores: Contribuição à modernização e moralização do mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 56 e 57.

[17] WALD, Arnoldo. Parecer. In: CARVALHOSA, Modesto (Org.); LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros (Org.); WALD, Arnoldo (Org.). A Responsabilidade Civil da Empresa Perante os Investidores: Contribuição à modernização e moralização do mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 116 a 119.

VOLTANDO AO JULGAMENTO DOS ACIONISTAS MINORITÁRIOS DA PETROBRAS

Feitas as distinções acima, parece-nos que, ao entender que o acionista minoritário não poderia ter ajuizado a ação de responsabilidade contra a acionista controladora, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região aplicou incorretamente o artigo 159, § 7º da Lei das S.As. ao caso comentado.

Segundo o próprio acórdão, o investidor formulou dois pedidos indenizatórios diferentes: o primeiro contra a Petrobras, com base no sistema de responsabilidade civil da companhia perante seus acionistas (regras gerais de Direito civil); e o segundo contra a União Federal, com base no regime especial de responsabilidade civil do acionista controlador, por abuso do poder de controle. Entretanto, a decisão aplicou a disciplina legal da responsabilidade civil dos administradores para decidir ambos os pedidos, ignorando que as normas processuais discriminadas no artigo 159 da Lei das S.As. próprias da responsabilidade dos administradores não incidem sobre esse caso específico.

Ou seja, o acórdão não se atentou às peculiaridades de cada modalidade de responsabilização civil existente, tratando os pedidos de responsabilização da companhia e da controladora como se fossem uma ação de responsabilidade individual contra administradores. A matéria é complexa, disso não há dúvidas. Exige-se, portanto, boa técnica e maior cuidado na formação do precedente, tanto pelo potencial de aplicação (ainda que de forma não vinculante) em inúmeros outros casos semelhantes, quanto pela importância do instituto na proteção dos investidores e no amadurecimento do mercado brasileiro.

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