Entenda quais foram as mudanças na arbitragem societária

Por oito votos a um, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a União Federal deve ser excluída da arbitragem coletiva instituída contra a Petrobrás por seus acionistas minoritários [1], na busca de indenização pela acentuada desvalorização dos papeis após as investigações da Operação Lava Jato revelarem desvios bilionários. A maioria dos ministros que compõem a Segunda Seção do STJ entendeu que a cláusula compromissória prevista no artigo 58 do estatuto social da companhia é inexistente em relação à sua acionista controladora – a União. Dessa forma, a eventual responsabilidade civil por abuso e omissão no exercício do poder de controle deverá ser julgada pela Justiça Federal da 3ª Região.
O entendimento ainda está sujeito a complementações em decorrência da interposição de recurso de embargos e declaração pelos acionistas minoritários da Petrobras. Na prática, porém, a chance de alterações significativas na decisão é remota. Logo, já é possível afirmar que o recém publicado acórdão do STJ marca uma derrota significativa, tanto aos acionistas da Petrobras – notadamente os investidores brasileiros, que já haviam sido excluídos da class action lawsuit proposta perante a Corte do Distrito Sul de Nova York[2] – quanto ao uso da arbitragem com meio de resolução de disputas no Brasil.

ENTENDENDO COMO ENTES FEDERATIVOS PODEM SE SUBMETER À ARBITRAGEM

Em alteração ocorrida no ano de 2015, a Lei de Arbitragem passou a expressamente permitir a participação da União – assim como de outras entidades federativas e suas respectivas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista[3] – em procedimentos arbitrais. Para que isso ocorra, os direitos em conflito devem necessariamente ser patrimoniais e disponíveis, ou seja, aqueles que possam ser avaliados pecuniariamente e negociados livremente por seus titulares. O STJ, em emblemático julgamento sobre conflito de jurisdições estadual e arbitral (Conflito de Competência nº 139.519/RJ, que permitiu resolução de litígio entre Petrobras e Agência Nacional do Petróleo via arbitragem), entendeu que, se determinada matéria pode ser objeto de um contrato administrativo, havendo conflito, ela também pode ser decidida em procedimento arbitral.

Obviamente, como a jurisdição arbitral emana da vontade das partes, é preciso que a União convencione com a contraparte a instituição da arbitragem como o meio de resolução do conflito, seja anterior ou posteriormente ao surgimento do conflito. No caso Petrobras, a adesão da União à cláusula compromissória parece-nos clara na redação do artigo 58 do estatuto social da companhia.

O CONTEXTO DA DECISÃO ENVOLVENDO A PETROBRAS

Voltando ao caso, a disputa teve início em meados de 2016, quando um conjunto de acionistas estrangeiros da Petrobras requereu o início de um procedimento arbitral perante a Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) contra a companhia e a União, na posição de acionista controladora, visando a indenização.

Notificada a se manifestar sobre o pedido de instituição de arbitragem, a União defendeu-se contra a sua inclusão no polo passivo, tendo como principais fundamentos: a inexistência de autorização legal para a arbitragem com a administração pública quando a cláusula compromissória foi aprovada (em 2002) e a matéria discutida no procedimento tinha conteúdo de interesse público que não poderia ser objeto de arbitragem.

Em julgamento prima facie, o presidente da CAM entendeu não haver razão para extinguir o procedimento antes da constituição do tribunal arbitral. A União, então, ingressou com uma ação na Justiça Federal buscando a declaração de que a cláusula arbitral prevista no Estatuto Social da Petrobras não se aplicaria a ela, com um pedido de tutela provisória para impedir o prosseguimento da arbitragem.[4]

A Justiça Federal deferiu a tutela provisória e, no início de 2017, os acionistas minoritários suscitaram conflito de competências, requerendo ao STJ que definisse a quem cabe decidir sobre a submissão da União à cláusula compromissória: se ao tribunal arbitral ou à Justiça Federal.

O JULGAMENTO DO CONFLITO DE COMPETÊNCIAS

No STJ, o conflito de competências foi distribuído à relatoria da Ministra Nancy Andrighi, notoriamente reconhecida como defensora da arbitragem no Poder Judiciário. A tutela provisória foi liminarmente revogada por ela, autorizando-se o prosseguimento da arbitragem instaurada pelos acionistas minoritários.

Em sessão plenária da Segunda Seção, a ministra manteve seu entendimento no sentido de conferir ao tribunal arbitral a competência de decidir sobre a submissão da União à cláusula compromissória estatuária, por entender que cabe a eles dar a primeira palavra sobre a existência, validade e eficácia da referida cláusula. Do outro lado, o ministro Luis Felipe Salomão entendeu pela competência da Justiça Federal para processar e julgar o caso, sob os fundamentos de que:

  • A União só poderia ser obrigada a se submeter à jurisdição arbitral se houvesse previsão legal ou regulamentar própria autorizando sua vinculação à cláusula compromissória estatutária aprovada pela assembleia geral da Petrobras;
  • A aprovação da cláusula compromissória estatutária da Petrobras deve ser interpretada como uma manifestação de vontade da própria Petrobras – e não da União – em se submeter à jurisdição arbitral;
  • A falta de autorização legal e de clareza da cláusula compromissória prevista no Estatuto social da Petrobras implicaria sua inexistência em relação à União, o que possibilitaria ao STJ se manifestar sobre a vinculação da União antes do tribunal arbitral;
  • A disputa extrapola os limites da cláusula compromissória, pois envolve questões sem conteúdo societário (no caso, responsabilização solidária da União em virtude da escolha equivocada dos dirigentes da Petrobras e da ausência de fiscalização da atuação de tais agentes).

Seguindo o voto do ministro Felipe Salomão pela maioria dos ministros, a decisão da Segunda Seção veio como um choque para estudiosos de arbitragem e direito societário. Os fundamentos do acórdão chamaram a atenção especialmente em vista da própria jurisprudência do STJ, que há décadas vinha reconhecendo que cabe aos árbitros decidir sobre a própria jurisdição, de modo que o Poder Judiciário não deve realizar exames prematuros sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem[5]; a cláusula compromissória prevista no estatuto social de companhia obriga a todos seus acionistas, tenham eles concordado ou não com tal disposição[6]; e a ausência de uma referência expressa à arbitragem com o Poder Público, na redação original da Lei de Arbitragem, não obsta que o Estado use e se submeta à jurisdição arbitral[7].

AS CONSEQUÊNCIAS DO JULGAMENTO SOBRE AS DISPUTAS ARBITRAIS

Em vista do profundo descompasso entre o acórdão e a jurisprudência já consolidada no STJ, é difícil avaliar nesse momento se a decisão é isolada e específica para o caso Petrobras ou se se trata de uma verdadeira guinada no posicionamento da Segunda Seção. O julgamento do conflito de competências da Petrobras não vincula automaticamente outros casos semelhantes. Seus fundamentos, porém, podem orientar outros julgamentos ao mesmo resultado.
Disso resulta uma preocupação imediata que gira em torno da extrema insegurança jurídica aos jurisdicionados e ao mercado como um todo quanto à eficácia de outras cláusulas compromissórias arbitrais.Parece ter sido mitigado o chamado “princípio da competência-competência”, previsto no artigo 8º, parágrafo primeiro, da Lei de Arbitragem, que confere aos árbitros a primazia para decidir sobre a própria jurisdição. Originalmente, o STJ entendia que – salvo em algumas situações muito excepcionais – o Poder Judiciário não poderia se manifestar sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem antes do tribunal arbitral. Tamanha a força do princípio da competência-competência que o STJ já o aplicou ainda que a questão discutida envolvesse a falsificação da assinatura lançada na cláusula compromissória[8].

Todavia, ao excluir a União do procedimento arbitral antes de a questão ser decidida pelo tribunal arbitral, o STJ acabou indo contra essa norma e contra sua própria jurisprudência. De acordo com a nova decisão, sugere-se uma nova orientação no sentido de que apenas as discussões referentes à validade e à eficácia da cláusula compromissória se sujeitariam ao primeiro juízo em sede arbitral. Portanto, as impugnações relacionadas à existência da cláusula compromissória passariam a ser de competência do Poder Judiciário. Esse ponto é especialmente relevante porque abrange as discussões relacionadas à extensão da cláusula compromissória.

Do ponto de vista legislativo, o fundamento central invocado pelo ministro Felipe Salomão, no sentido de se exigir previsão legal e específica para que a União e obrigue à jurisdição arbitral, sugere a criação de um sistema jurisdicional concorrente para as disputas envolvendo sociedades de economia mista.
Segundo o acórdão do STJ, a Lei de Arbitragem não é autorização legislativa suficiente para que a União, enquanto acionista controladora, se submeta à jurisdição arbitral, sendo necessário regulamentação específica para tanto. Como essa “autorização específica” ainda não existe, cria-se um problema grave de competência nas ações de litisconsórcio passivo necessário. Por exemplo, nos casos de anulação de deliberações assembleares, os acionistas minoritários estarão obrigados a submeter a disputa à CAM, porém não conseguirão acionar a União.

Tudo isso pode chancelar uma prática – na maioria das vezes equivocada – de se requerer ao Poder Judiciário que impeça o prosseguimento de um procedimento arbitral ou dele exclua determinada parte antes que o tribunal arbitral possa avaliar a pertinência do pedido e mesmo que a adesão à convenção de arbitragem seja inequívoca. É o risco de se mudar as regras do jogo após os próprios participantes terem as definido. E como cláusulas compromissórias em estatutos sociais tendem a adotar redação semelhante à sugerida pela câmara arbitral (no caso, a CAM), esse risco se potencializa ainda mais a outras companhias de capital aberto que tenham a União ou estados como acionistas (Vale, Banco do Brasil, Eletrobras, etc.).

[1] STJ; Conflito de Competência nº 151.130/SP. Segunda Seção; Relator para o acórdão: Ministro Luis Felipe Salomão. Data de julgamento: 27/11/2019. Data de publicação: 11/02/2020.

[2] In Re Petrobras Securities Litigation (14-cv-9662). Judge Jed. S. Rakoff’s Opinion on the Motion to Dismiss. Disponível em: <https://cases.justia.com/federal/district-courts/new-york/nysdce/1:2014cv09662/435841/194/0.pdf?ts=1438464300>, acesso em 05/03/2020.

[3] Inclusive, a questão do uso da arbitragem por sociedades de economia mista já foi muito bem abordada pelo STJ ao decidir o Recurso Especial nº 612.439/RS, de 2006, em que restou decidido que os contratos celebrados por sociedades de economia mista submetem-se às normas ordinárias aplicáveis a qualquer outra sociedade empresária, inexistindo razção para afastar a convenção de arbitragem pactuada pela CEEE em contrato de compra e venda de energia elétrica.

[4] Esse tipo de pedido cautelar, voltado a impedir a instauração ou prosseguimento de procedimentos arbitrais não é incomum no Brasil, especialmente no contexto da Administração Pública ou sociedades de economia mista. Segundo Daniel Levy (As Interações Entre Poder Judiciário e Arbitragem. In: LEVY, Daniel (Coord.). Curso de Arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 327), representa uma forma de intervenção lesiva do Poder Judiciário do sistema arbitral, sendo a mais patente prova da imaturidade do princípio da competência-competência em um país.

[5] STJ; Aglnt no AREsp 976.218/SP. Terceira Turma; Relator: Ministro Moura Ribeiro. Data de julgamento: 17/06/2019.

[6] STJ; REsp nº 1.727.979/MG. Terceira Turma; Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Data de julgamento: 12/06/2018.

[7] STJ; REsp nº 904.813/PR. Terceira Turma; Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Data de julgamento: 20/10/2011.

[8] STJ: REsp nº 1.550.260/RS. Terceira Turma. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de julgamento: 12/12/2017.

*Colaborou Bruno Viana, advogado associado do escritório Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados. 

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