Os impactos econômicos causados pela pandemia têm provocado diversas discussões

Os impactos econômicos causados pela pandemia deflagrada pela covid-19 e as diferentes medidas adotadas para conter o avanço do novo coronavírus têm se mostrado um terreno rico para diversas discussões eminentementes dentro do Direito civil. Rescisão ou revisão de contratos por onerosidade excessiva pela chamada teoria da imprevisão, exclusão de responsabilidade por inadimplemento com base em força maior e correção do preço para conservação do valor da prestação são, com efeito, alguns exemplos de mecanismos jurídicos de regulação de obrigações continuadas atingidas de alguma forma pela pandemia e que têm sido bastante comentados neste período de incertezas jurídicas, econômica e sociais.
Um traço comum desses mecanismos é a análise das circunstâncias que extinguem, impedem ou modificam direitos sob o ponto de vista do devedor da obrigação — ou seja, o que há à disposição do devedor para socorrê-lo em caso de default é revisar ou rescindir contratos, não pagar multa, pedir a redução do preço. Obviamente, o credor será chamado a participar de qualquer pleito do devedor que envolva esses mecanismos. Enquanto isso não ocorre e as partes não alcançam uma solução, seja ela amigável ou jurisdicional, como o credor deve se comportar em face da situação de inadimplemento do devedor?

A cláusula geral de boa-fé objetiva, presente em todos os contratos por força legal, impõe deveres laterais às partes. Aparentemente, a questão é simples: as partes devem se comportar em busca da performance do contrato. Revela, porém, níveis de complexidade à medida em que, de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), as partes — notadamente, o credor — têm a obrigação de mitigar os prejuízos sofridos.

COMO FUNCIONA O DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO

O dever de mitigar o próprio prejuízo não tem previsão legal expressa no Código Civil. Trata-se de uma construção doutrinária e jurisprudencial que ganhou ampla aceitação entre os tribunais brasileiros, especialmente após o julgamento do Recurso Especial nº 758.518/PR em 2010. No julgamento, foi decidido que a parte prejudicada pelo inadimplemento deve adotar todas as medidas necessárias e possíveis para que os danos não sejam agravados.

De acordo com a jurisprudência do STJ, aquele que se mantém inerte após o inadimplemento do contrato viola os deveres de lealdade e cooperação impostos pela cláusula geral da boa-fé objetiva — o que configura ato de abuso de direito. A consequência desse abuso de direito é a redução da indenização devida pela parte inadimplente, que não estará obrigada a reparar os prejuízos que poderiam ser evitados por meio da mitigação de prejuízos.

Evidentemente, o dever geral de mitigar o próprio prejuízo não é absoluto, nem exige que a parte lesada pelo inadimplemento adote toda e qualquer medida abstratamente capaz de reduzir os danos sofridos. O que se sanciona é a inércia inescusável da vítima do dano em buscar uma solução razoável para evitar o agravamento de sua própria situação. Nesse sentido, o STJ vem reconhecendo que o credor não está obrigado a se prejudicar tentando reduzir seus prejuízos, nem a agir contrariamente à sua atividade empresarial.

Deve-se ressaltar que esse standard da razoabilidade é amplamente aceito não só pela jurisprudência nacional, como também por diversas convenções e normas internacionais por vezes utilizadas no comércio internacional, como a CISG (Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias) e os princípios do UNIDROIT (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado). Ambas convenções contêm disposições bastante similares à construção jurisprudencial do STJ, não obstante sua aplicação e interpretação específica contenha algumas particularidades provenientes de seu caráter internacional.

O standard de razoabilidade varia dependendo do caso concreto. Aquilo que pode ser considerado razoável para um determinado segmento industrial ou um certo nicho pode não ser em outros mercados. É importante considerar aqui as práticas amplamente aceitas pelo mercado para aquele tipo de negócio, a cultura das partes envolvidas na transação, o valor da operação envolvida e, principalmente, o que as partes convencionaram para casos de inadimplemento. Em negócios de longa duração, a conduta pretérita das partes pode ser um forte indicador do standard de razoabilidade aplicável.

Os gastos e despesas incorridos para tentar mitigar os prejuízos integram a indenização devida, ainda que as medidas adotadas pela parte se revelem incapazes de efetivamente reduzir as perdas totais. A partir do momento em que o ordenamento jurídico impõe ao credor o ônus de tentar reduzir seus prejuízos, as medidas adotadas para mitigar o dano passam a ser decorrência necessária do inadimplemento. Por outro lado, é importante ter em mente que o critério da razoabilidade também se aplica aqui, sendo certo que despesas absolutamente irrazoáveis não serão indenizadas.

O DEVER DE MITIGAÇÃO DO PREJUÍZO NO CONTEXTO DA COVID-19

Um dos mais emblemáticos casos de inadimplemento contratual ocasionado pela pandemia do novo coronavírus é o das companhias chinesas. Em virtude das severas medidas de contenção e afastamento social impostas pelo governo chinês desde fevereiro de 2020, essas empresas descumpriram diversos contratos de exportação anteriormente celebrados.

Os atrasos na entrega de produtos e insumos importados da China resultou, segundo levantamentos, num desabastecimento que já afeta 70% das companhias nacionais que atuam no setor de importações. Nesse contexto, há de se indagar quais as medidas a serem tomadas pelas companhias brasileiras. Seriam elas obrigadas a adotar medidas voltadas a mitigar os impactos do inadimplemento chinês na cadeia produtiva, sob pena de perderem seu direito à indenização? Parece-nos que a resposta dependerá das medidas postas à disposição da parte para evitar o agravamento dos prejuízos. Como dito anteriormente, o ônus de mitigar o próprio prejuízo não é absoluto, sujeitando-se aos preceitos de razoabilidade incidentes em cada caso concreto.

Outro exemplo bastante corriqueiro que se pode citar é o da aquisição de insumos junto a outros fornecedores — possivelmente com estoque acumulado de meses anteriores à pandemia, ou com atuação em países atingidos de forma menos gravosa pela covid-19. Nesse caso, a experiência sugere que a medida seria tida por razoável e, a princípio, poderia ensejar uma redução no valor da indenização caso o credor permanecesse inerte. Entretanto, há algumas particularidades a serem analisadas antes de traçar uma conclusão definitiva.

A primeira delas é a possibilidade fática de se adquirir os produtos de um terceiro, haja vista que muitos dos produtos importados detém caráter infungível e não podem ser substituídos por versões similares fornecidas por outros agentes de mercado. Ao lado disso, é possível que o tempo necessário para cotar um novo fornecedor inviabilize a conclusão do novo negócio a tempo de evitar o inadimplemento em cadeia, o que novamente tornaria a medida inócua e afastaria o dever de mitigar.

Noutro prisma, pode-se pensar nos casos de inviabilidade econômica da medida. A lei da oferta e demanda estipula que a escassez do produto desejado tende a resultar num aumento do preço, o que por vezes pode tornar a substituição do produto junto a outro fornecedor impraticável. Em tais casos, tem-se interpretado que o ônus de mitigar o próprio prejuízo exige que o credor tome medidas mínimas para identificar a possibilidade de substituir o produto — como, por exemplo realizar cotações — mas não lhe impõe efetivamente adquirir a mercadoria ou requerer o envio de um orçamento oficial por escrito.

Um terceiro cenário é o da impossibilidade jurídica de se mitigar o prejuízo via aquisição da mercadoria junto a um terceiro. O caso, apesar de menos comum, tem considerável aplicação prática no contexto de contratos celebrados por longa duração, nos quais o importador brasileiro garanta exclusividade ao exportador estrangeiro em troca de consideráveis descontos. Nessa situação, a medida seria considerada irrazoável, pois exigiria que o importador descumprisse a cláusula de exclusividade para mitigar o prejuízo que lhe foi causado.

Mesmo em situações aparentemente simples, como a substituição de mercadorias junto a outros fornecedores, há complexidades no caso concreto que podem alterar drasticamente as conclusões. Uma medida aparentemente razoável pode rapidamente mudar de contexto considerando fatores econômicos, fáticos e jurídicos. Nesse cenário, a conclusão que nos parece certa é que o credor não deve permanecer inerte.

*Colaborou Bruno Viana, advogado associado do escritório Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.

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